Eduquês e Contra-Eduquês – Sobre um Artigo de Carlos Fiolhais e o Caminho do Ensino

 


(Ou de como tanto os defensores quanto os detractores do eduquês continuam a laborar num erro, apesar do neologismo já estar em desuso: lutam, como Dom Quixote, contra uma coisa que não existe. Mas como é necessário um objecto contra o qual o seu conceito se deve medir e a sua polémica se justificar, é preciso construí-lo, mesmo que não exista. E, mesmo que já não se fale muito nisso, talvez seja porque infelizmente já se interiorizou e naturalizou, em especial nas disciplinas Humanísticas, que nas outras aparece mal embora já tenha deixado algumas mossas que se tentam em pânico corrigir, o relativismo pós-modernista do desinteresse subjectivista pela forma, pelo método, pela objectividade na aprendizagem, e mesmo pelos conteúdos, se acaso estes não saírem da cabeça dos alunos nos seus pequenos ensaios arbitrários e com pouco embasamento cultural.)
Carlos Fiolhais, no “blogue” De Rerum Natura (título que, pelas categorias positivistas implícitas – racionalismo idealista lógico-abstracto, a escolástica do nosso tempo -, que o norteiam, não deveria fazer-se apadrinhar pelo grande filósofo materialista Lucrécio), escreveu, vai para uns meses, um comentário encomiástico ao livro de E. D. Hirsch Jr., Cultural Literacy, citando um glossário, apresentado por este, dos temas maiores da dita corrente pedagógica contemporânea – aliás dividida em doutrinas que abraçam princípios muitas vezes opostos, como é o caso da pedagogia por objectivos fundada num comportamentalismo moderado (ironicamente mais próximo dos críticos do “eduquês”), e o condutismo ou construtivismo, pedagogia activa orientada – apesar dos seus limites teóricos – para o desenvolvimento integrado da personalidade, no seu carácter, sentimentos, pensamento crítico e conhecimentos, que só aparentam serem palavra vagas e mágicas porque não se prestam, como muitas vezes o positivismo exige, a meras definições categoriais mas designam aspectos dum processo à vez analítico e sintético – e sarcasticamente intitulada no nosso pequeno canto de “eduquês” (não sendo um conceito, não se refere objectivamente a nada).
Eis o glossário que, tal como foi exposto no comentário de Carlos Fiolhais, aparece descontextualizado das suas origens históricas e filosóficas, da sistemática teórica e da prática que lhe dá sentido:
«1.Concepção instrumental da educação:
“aprender a aprender”,
“aptidão para o pensamento crítico”,
“aptidões metacognitivas”,
“aprendizagem permanente”.
2.Desenvolvimentalismo romântico:
“aprendizagem ao ritmo dos alunos”,
“escola centrada na criança”,
“diferenças individuais dos alunos”,
“estilos individuais de aprendizagem”,
“inteligências múltiplas”,
“ensinar a criança e não a matéria”.
3.Pedagogia naturalista:
“construtivismo”,
“aprendizagem cooperativa”,
“aprendizagem por descoberta”,
“aprendizagem holística”,
“método de projecto”,
“aprendizagem temática”.
4.Antipatia ao ensino de conteúdos:
“os factos não contam tanto como a compreensão”,
“os factos ficam desactualizados”,
“menos é mais”,
“aprendizagem para a compreensão”.»
Carlos Fiolhais (de resto um cientista que respeito com toda a minha humildade dentro da área científica que domina como poucos, a física) sustenta, por exemplo – sendo esta uma tese central do chamado “eduquês” -, que “aprender a aprender” «é, em geral, apenas um jogo de palavras que inebria quem as profere. […] Nesta concepção educativa, interessa mais o instrumento – a cana de pesca – do que propriamente o peixe. Quem diz isso é capaz de ficar horas perdidas sem pescar nada, não se importando nada com isso. De resto, que diz isso parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se poderão transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam?»
Totalmente de acordo com a última frase. Mas não estará Carlos Fiolhais a interpretar a expressão “aprender a aprender” distorcendo-lhe o sentido através da sua descontextualização das teorias e das práticas de ensino-aprendizagem que a tomam como lema, claro que não por má-fé mas por desconhecimento destas? Não estará, pelo menos, a ignorar a seriedade dos problemas que levanta ocultada pelos documentos e pelas práticas dos que, pelo contrário, a usam seja de maneira preguiçosa seja precisamente por má-fé e oportunismo político, estatístico e populista, sendo que este sim é um dos obstáculos principais – junto com a concepção pragmática, instrumental, operativa do saber – à educação que devemos ter?
Senão vejamos. A “escola nova”, na sua recepção mais primária mas com má-fé nas altas instâncias do poder educativo, de origem romântica mas instrumentalizada nas últimas décadas para a formação de jovens de carácter cegamente competitivo e com uma atitude utilitária para com o conhecimento e a realidade humana e natural – ou seja, para a educação dos jovens no empreendedorismo focado na acumulação de capital, na concorrência brutal entre empresas sem misericórdia para com os trabalhadores, portanto também associado à criatividade que isso impõe (quem não quer ter um telemóvel “touch screen”, que dá mais sensualidade à comunicação e sentido à vida?), assim como à cobiça, à vaidade, ao consumo desenfreado necessário à manutenção deste sistema económico -, a “escola nova”, dizia, é ideologicamente pedocêntrica (os direitos do homem estendem-se aos da criança simultâneamente à medida que se vai cumprindo a ética formal burguesa, universalizadora ‘a priori’, e na medida em que se vai tornando um ser de consumo imprescindível para a acumulação capitalista), construindo-se a partir da noção de aprendizagem, subordinando a mundividência dos adultos à estrutura cognitiva, expectativas e motivações dos alunos, sem compreender – ou fazendo crer que o desconhece – que a estrutura cognitiva não se desenvolve por geração espontânea nem que as motivações das crianças e adolescentes são inatas mas constituem condutas mobilizadas pelos interesses do mundo adulto que as rodeia. É que até os jogos infantis foram de invenção adulta.
Os traços mais característicos da chamada “escola nova” é – abstraindo de tudo o que distingue as diversas escolas “novas” -: – horror ao método expositivo, considerado como violência mental, pois pretende impor o universo cognitivo e afectivo do professor ao universo incomensurável (melhor dizendo, aberto às sempre novas solicitações concorrenciais da sociedade civil) do aluno; – a escola deve ter a missão de formar personalidades (diga-se, caracteres competitivamente agressivos, embora civicamente respeitadores, porque é do interesse de todos que a sociedade pelo menos viva numa harmonia formal, de resto essencial) e não exclusivamente mentes.
A “escola nova” basear-se-á pois, num modelo de não-directividade, valorizando a eficácia, o êxito, a realização, numa perspectiva de criatividade associada ao lucro económico empresarial, ao sucesso militar, ao poder político, às artes, domesticadas pela sua institucionalização como objectos de prestígio, conduzindo a uma sociedade de estatutos sociais discriminados na forma duma meritocracia, que fez grande parte do sucesso da nação norte-americana, e a miséria de muitas outras.
Porém, o próprio modelo tradicional, directivo, magistral, sob a capa da racionalidade, já visava sobretudo objectivos pragmáticos, promovendo também a ideologia do sucesso.
Só que a escola magistral já não se aplica ao nosso tempo (parece indicá-lo o processo de Bolonha), para o qual não interessa saber muito – o porquê, o fundamento, o enquadramento sintético – mas saber onde ir buscá-lo e saber operacionalizá-lo especializadamente nos objectivos reprodutivo e criativo-concorrenciais – o objectivo competitivo e o como se pode alcançá-lo.
Muito mais se poderia dizer sobre a nova “escola nova”, tão apreciada pelos actuais poderes políticos e económicos. Não podendo desenvolver igualmente todos os tópicos correlatos e associados, procurarei esclarecer então o sentido histórico-filosófico e o verdadeiro significado da expressão “aprender a aprender”, injustamente maltratada quer pelos críticos quer pelos adeptos institucionais do “eduquês”.
Ela tem raízes inimaginavelmente antigas, socráticas e isocráticas, mas podemos começar com o grande filósofo alemão Immanuel Kant e com a sua “Informação acerca da orientação de cursos no semestre de Inverno de 1765-66″, que incidiu sobre dois tópicos: reflexão sobre a pedagogia em geral e reflexão sobre a didáctica da Filosofia.
O seu texto, como não podia deixar de ser, representa uma revolução copernicana na pedagogia, fornecendo as bases filosóficas para uma escola nova, que nada tem, como veremos, da caricatura a que actualmente foi reduzida: o ensino-aprendizagem não deve girar em torno de saberes já constituídos e dogmáticos mas são os saberes que devem girar à volta do homem, como produtos das suas faculdades e portanto, no reconhecimento tanto do carácter determinante da actividade cognoscitiva do indivíduo como da ambição sistemática, necessária embora muitas vezes mal fundada, da razão humana, saberes susceptíveis de um trabalho de revisão crítica pelo esforço de assimilação prática, ética, estética e intelectual da experiência e da experimentação a que todo o ser humano pode sujeitar as coisas a fim de torná-las seus objectos. Assim, saber fazer uso do entendimento é para Kant, como escreveu em “O que são as Luzes”, ousá-lo contra todas as formas de tirania intelectual e moral, seja ela mundana seja dita transcendente.
A pedagogia de Kant não pode pois ser ignorada, por mais defeitos que presentemente se lhe possa apontar.
No que respeita a uma teoria geral da educação, Kant inscreve-se no contexto da pedagogia do século XVIII. É influenciado por Rousseau e sobretudo por Basedow, que introduz o jogo, o trabalho manual e a educação física no currículo escolar. Kant denuncia a posição paradigmática da pedagogia do século XVIII, que é a da ideia de que o estudo é necessariamente um esforço violento imposto, centrado no ensino ignorando as particularidades do processo de desenvolvimento infantil.
Todavia Kant também critica a Basedow um excessivo sensorialismo e emotivismo, assim como a demasiada importância conferida à ludicidade. O projecto kantiano valoriza a disciplina e o respeito pela ordem escolar, na medida em que ela consiste num instrumento de orientação dos alunos para o desenvolvimento sistemático, metódico, das suas aptidões e conhecimentos, considerando igualmente que as recompensas (behavioristas, diríamos agora), supostamente motivos básicos da acção numa perspectiva hedonista, tendem a mercantilizar a educação, no seu próprio seio, pervertendo o seu sentido e valor.
Na verdade, uma vez que a educação consiste numa transformação não-natural da criança e do adolescente, exigindo a mobilização da noção de dever, qualquer progresso – mesmo tendo que ser produto da actividade construtiva do aluno – obrigará a um esforço garantido pela disciplina e pelo respeito perante as regras pedagógicas instituídas.
Aliás, disciplina, esforço e espontaneidade na aprendizagem não são termos contraditórios, antes pelo contrário. Para Kant, a educação é o meio pelo qual o homem adquire a sua humanidade e, posto que ela sirva para o homem adquirir todas as suas virtualidades, deve torná-las actuais, realizadas. Ora, a realização de qualquer mudança obriga a um esforço, para o qual a ausência de inclinação natural, espontânea, para o conhecimento – ao invés do afirmado por Aristóteles -, se torna necessária a disciplina.
Kant preconiza um esquema progressivo na formação integral do homem, esquema que segue a génese do próprio conhecimento (a pedagogia não é mais do que a doutrina dos processos práticos de aquisição do conhecimento junta a uma ética e a um projecto), com as seguintes etapas: intuição, conceitos do entendimento, integração dos conceitos empíricos nos seus fundamentos, constituição da ciência mediante o encadeamento bem fundamentado dos juízos.
Há portanto, no projecto educativo da escola nova de Kant, um plano prévio e estratégico de estudos que não se coaduna ‘a priori’ de maneira harmoniosa com as inclinações espontâneas dos alunos e com os seus interesses imediatos, dispersos e incoerentes.
A alteração da ordem dos estratos do conhecimento, assim como a prevalência do ludismo, privilegiando a subjectividade na relação com o objecto de aprendizagem, no processo pedagógico leva a um pseudo-saber, porque o que se aprenderá não poderá estar fundamentado numa totalidade cognoscitiva. Em suma, aprender-se-ão, no máximo, juízos e conceitos que não estão ligados a uma totalidade integradora, perdendo assim a sua base de significação.
Ao passar ao segundo tópico na sua “Informação de orientação de cursos”, Kant esclarece finalmente o que entende por aquilo que actualmente se designa por “aprender a aprender”. Nada mais do que “aprender a pensar”. E o comprazimento espasmódico com o aparente paradoxo dissipa-se.
O que se aplica à Filosofia aplica-se a qualquer disciplina acerca dum saber arquitectonicamente constituído.
Toda a disciplina escolar deste tipo, encarada no seu conteúdo como sistemática de um saber prévio, é pois um sistema de conceitos elaborados dedutivamente. Mas qualquer ciência – permitimo-nos generalizar o que Kant diz da Filosofia – tem que ser tomada, no âmbito da actividade escolar, ou de aprendizagem, como matéria para nela se exercer o pensar autónomo.
Isto quer dizer também que, por exemplo, sem Filosofia escolar, sem ensino sistemático da Filosofia, não pode haver atitude filosófica.
Com isto rebate-se, confirmando na sua verdade, a objecção de Carlos Fiolhais a respeito da caricatura real da “nova escola”, de que não se podem transmitir atitudes, ou disposições e métodos, em abstracto sem objectos que as exijam. A organização mental, a problematização, a crítica implicam conhecimentos seguros sobre os quais se possa raciocinar; mas, inversa e simultâneamente, o desenvolvimento do raciocínio é uma condição necessária para a aquisição de novos conhecimentos. As operações interiorizadas pela experiência dos objectos constituem a base formal da determinações de novos factos. Parafraseando Kant, juízos sem fenómenos são vazios; fenómenos sem juízos são cegos.
Mas Kant diz mais: não são apenas os objectos que exigem as atitudes do sujeito perante eles – caso em que recairíamos numa passividade essencial do sujeito a respeito do objecto, como sucede no empirismo e no positivismo -: é o sujeito, para usar termos piagetianos, na sua actividade originariamente vital, e simultâneamente social, que assimila e acomoda os objectos nas suas operações cognitivas.
Quer dizer, se há conhecimentos há atitude. Mas para haver atitude, é preciso “aprender a aprender” ou a pensar, quer dizer a determinar factos na experiência e a ter um distanciamento crítico perante os procedimentos mentais e as crenças.
Não se aprende a aprender a aprendizagem – o que parece ser a interpretação que muitos pedagogos actuais dão do mote “aprender a aprender” -, nem mesmo os pedagogos aprendem a aprender qualquer coisa ou a ensinar sem matéria para o fazer. Se “aprender a aprender” tem sentido é na medida em que, pelo contrário, não se trata duma actividade no vazio mas numa experiência contínua que, pouco a pouco, por generalização e reflexão, destaca do complexo total de cada uma das aprendizagens singulares os procedimentos formais de conhecimento, de análise, síntese, indução simples ou probabilística, dedução, analogia, etc..
“Aprender a aprender” é, em suma, o processo progressivamente generalizador e reflexivo de conhecimento de matérias visadas pelo sujeito, portanto ao mesmo tempo orientado para a abstracção e generalização do método de aprendizagem dessas mesmas matérias.
“Aprender a aprender” é adquirir ou, como se queira, tomar consciência de métodos, na prática duma aprendizagem concreta. E o método, criticamente reflectido, é a conduta do sujeito livre perante o mundo que o rodeia.
Assim, ao mesmo tempo que descobre o valor alimentar do peixe, apercebe-se da dificuldade de o apanhar com mãos nuas e acaba por ter de construir uma ferramenta (a cana) e um método (a técnica de pesca à linha). Está, pois, justificado o provérbio chinês: “Não lhe dês o peixe mas ensina-o a pescar”.
Escreve Kant a respeito da tarefa do aluno: «Em poucas palavras, ele não deve aprender pensamentos mas aprender a pensar; não se deve levá-lo mas guiá-lo, se se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo.»
«Ousa pensar por ti mesmo.», escreveu Kant em “O que são as Luzes”.